A poesia do samba


]]> Mangueira fez ala das baianas tradicionais da Praça Onze
Alexandre Durão/G1
Quem não é do meio não deve se meter a avaliar ritmos e melodias ouvidos no desfile das escolas. Não leva em conta que o samba ficou parecido com marcha para que milhares de figurantes e um montão de carros passem dentro dos 75 minutos fixados pelo regulamento, nem compreende que a melodia do samba-enredo é, em geral, uma sucessão de clichês combinados por um time de cinco, seis ou mais compositores. O desfile tem suas regras. E é em nome delas que quem não é do meio, como nós, deve ouvir em silêncio.
Mas podemos falar das letras. Em especial porque, ao ler impressas as deste ano, sem o adorno da melodia e sem a pulsação do ritmo, ficamos com a impressão de que elas nunca foram tão bem feitas. Mais que impressão, acreditamos que, em toda a história dos carnavais, os sambas-enredo jamais foram tão bem letrados, tanto no Rio como em São Paulo. Uma ou outra pode ter escorregado aqui ou ali, mas a maioria se saiu merecendo nota 10.
Tomemos como exemplos as duas escolas de maior torcida, a Mangueira no Rio e a Vai-Vai em São Paulo. Uma propõe que se reconte a história de um país que não conhece a própria história, um país que não está no retrato. A outra também fala de um passado mal conhecido, do grito forte da senzala, de um sonhado, mas improvável, Quilombo do futuro.
O samba da Mangueira tem seis autores. De qual deles é a letra, impossível saber: “Brasil, meu nego, deixa eu te contar/A história que a história não conta/O avesso do mesmo lugar/Na luta é que a gente se encontra…” O samba da Vai-Vai tem mais dois autores que o da Mangueira: “Eu sou a negra alma do Bixiga/Herança que marcou a minha vida/Tem que respeitar minha raiz/O Orum vai desvendar toda a verdade/Pra resgatar nossa identidade/Das linhas que a história apagou.”
Dois exemplos para reconhecer que os organizadores dos desfiles fizeram muito bem em atirar no lixo o velho regulamento, redigido por um professor (não do meio), pedindo tolerância com os erros de português e outras impropriedades que, por sua simplicidade, o sambista tinha o direito de cometer. No dia em que o regulamento mudou, passando-se a exigir correção e sentido nas letras, os poetas do samba começaram a caprichar. Hoje, fazem bonito.
Se o regulamento atual, sem tais compreensões e tolerâncias, existisse há mais tempo, talvez Stanislaw Ponte Preta não tivesse motivo para compor, há 50 anos, o impagável (embora muito criticado) “Samba do crioulo doido”:
“Foi em Diamantina, onde nasceu JK/Que a Princesa Leopoldina arresolveu se casá/Mas Chica da Silva tinha outros pretendentes/E obrigou a princesa a se casá com Tiradentes.” Nem fariam parte do anedotário das escolas –– de qual, de onde, de quando, omitimos por não sabermos se é fato ou lenda – os versos do samba-enredo com que foi homenageado o primeiro-ministro do Reino Unido durante a segunda Guerra Mundial: “Queimô seu último cartucho/O instadista Iston Churcho”.